A Fazenda Pública e a (im) possibilidade de requerer falência dos seus credores
Tradicionalmente, os doutrinadores se dividem em duas correntes a respeito do assunto. Nas lições de Fábio Konder Comparato[1], por exemplo, o autor sustenta que a execução fiscal é um privilégio da Fazenda Pública e não uma imposição, motivo pelo qual a Fazenda não fica impedida de declarar o seu crédito em falência, apenas se sujeitando se o declarar, às regras da falência.
A propósito, a própria legislação afirma, sem fazer nenhuma distinção, que qualquer credor pode requerer a falência do devedor (art. 97, IV, da Lei nº 11.101/2005).
Por outro lado, outros doutrinadores defendem a corrente de que a Fazenda Pública carece de interesse de agir para requerer a falência de seus devedores. Nas palavras de Rubens Requião:
“De nossa parte, estranhamos o interesse que possa ter a Fazenda Pública no requerimento de falência do devedor por tributos. Segundo o Código Tributário Nacional os créditos fiscais não estão sujeitos ao processo concursal, e a declaração de falência não obsta o ajuizamento do executivo fiscal, hoje de processamento comum. À Fazenda Pública falece, ao nosso entender, legítimo interesse econômico e moral para postular a declaração de falência de seu devedor. A ação pretendida pela Fazenda Pública tem isso sim, nítido sentido de coação moral, dadas as repercussões que um pedido de falência tem em relação às empresas solventes’ (‘Curso de Direito Falimentar’, 1º vol., nº 72, pág. 95, 12ª edição).”
Com supedâneo nessa segunda corrente, acabou prevalecendo esse entendimento na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Veja-se as seguintes decisões:
“Processo civil. Pedido de falência formulado pela Fazenda Pública com base em crédito fiscal. Ilegitimidade. Falta de interesse. Doutrina. Recurso desacolhido.
– Sem embargo dos respeitáveis fundamentos em sentido contrário, a Segunda Seção decidiu adotar o entendimento de que a Fazenda Pública não tem legitimidade, e nem interesse de agir, para requerer a falência do devedor fiscal.
– Na linha da legislação tributária e da doutrina especializada, a cobrança do tributo é atividade vinculada, devendo o fisco utilizar-se do instrumento afetado pela lei à satisfação do crédito tributário, a execução fiscal, que goza de especificidades e privilégios, não lhe sendo facultado pleitear a falência do devedor com base em tais créditos.
(STJ, REsp 164.389/MG, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, DJ 16.08.2004, p. 130).
TRIBUTÁRIO E COMERCIAL - CRÉDITO TRIBUTÁRIO - FAZENDA PÚBLICA - AUSÊNCIA DE LEGITIMIDADE PARA REQUERER A FALÊNCIA DE EMPRESA.
A controvérsia versa sobre a legitimidade de a Fazenda Pública requerer falência de empresa.
O art. 187 do CTN dispõe que os créditos fiscais não estão sujeitos a concurso de credores. Já os arts. 5º, 29 e 31 da LEF, a fortiori, determinam que o crédito tributário não está abrangido no processo falimentar, razão pela qual carece interesse por parte da Fazenda em pleitear a falência de empresa.
Tanto o Decreto-lei n. 7.661/45 quanto a Lei n. 11.101/2005 foram inspirados no princípio da conservação da empresa, pois preveem respectivamente, dentro da perspectiva de sua função social, a chamada concordata e o instituto da recuperação judicial, cujo objetivo maior é conceder benefícios às empresas que, embora não estejam formalmente falidas, atravessam graves dificuldades econômico-financeiras, colocando em risco o empreendimento empresarial.
O princípio da conservação da empresa pressupõe que a quebra não é um fenômeno econômico que interessa apenas aos credores, mas sim, uma manifestação jurídico-econômica na qual o Estado tem interesse preponderante.
Nesse caso, o interesse público não se confunde com o interesse da Fazenda, pois o Estado passa a valorizar a importância da iniciativa empresarial para a saúde econômica de um país. Nada mais certo, na medida em que quanto maior a iniciativa privada em determinada localidade, maior o progresso econômico, diante do aquecimento da economia causado a partir da geração de empregos.
Raciocínio diverso, isto é, legitimar a Fazenda Pública a requerer falência das empresas inviabilizaria a superação da situação de crise econômico- financeira do devedor, não permitindo a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores, tampouco dos interesses dos credores, desestimulando a atividade econômico-capitalista. Dessarte, a Fazenda poder requerer a quebra da empresa implica incompatibilidade com a ratio essendi da Lei de Falências, mormente o princípio da conservação da empresa, embasador da norma falimentar. Recurso especial improvido.” (REsp 363.206/MG, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 04/05/2010, DJe 21/05/2010).
No mesmo sentido, foi aprovado o Enunciado nº 56 da I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal, assim redigido: “A Fazenda Pública não possui legitimidade ou interesse de agir para requerer a falência do devedor empresário”. Ocorre que, em contrariedade a esse entendimento, já majoritário na doutrina e na jurisprudência mais atuais, a Medida Provisória nº 899/2019, que estabelece os requisitos e as condições para que a União e os devedores ou as partes adversas realizem transação resolutiva de litígio, nos termos do art. 171 do CTN, previu que:
Art. 8º A rescisão da transação:
I - implicará o afastamento dos benefícios concedidos e a cobrança integral das dívidas, deduzidos os valores pagos; e
II - autorizará a Fazenda Pública a requerer a convolação da recuperação judicial em falência ou a ajuizar ação de falência, conforme o caso. (grifamos)
No entanto, o Congresso Nacional, na discussão do projeto de lei de conversão, entendeu por bem a retirada desse dispositivo. Segundo o parecer da Comissão Mista, “parece exagero permitir que a Fazenda Pública ajuíze, ela própria, ação de falência no caso de a transação ser rescindida. A nosso ver, essa drástica iniciativa deve ser dos credores privados, até porque os créditos tributários gozam de preferência em relação à maioria dos demais débitos da empresa”.
Diante disso, tem-se que o entendimento jurisprudencial e doutrinário que predominavam no ordenamento jurídico continuam prevalecendo, ante a decisão deliberada do legislador de retirar tal previsão da norma positivada o que, não obstante posições diversas, parece reafirmar, por todos os meios a inciativa da Fazenda Pública em requerer falência do credor tributário.
[1] COMPARATO, Fábio Konder. Falência – legitimidade da fazenda pública para requerê-la. Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 442, agosto, 1972.